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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

"O QUE É BOM MESMO É A VIDA."

Hoje, 1º de fevereiro, é o dia do meu aniversário. Para comemorar, quero deixar registrado um texto escrito por Rachel de Queiroz (1910-2003) e publicado no jornal O Estado de São Paulo em 27 de julho de 2002.

“NÃO UMA PROMESSA, MAS UM VÁCUO

Ah, meus tempos, meus bons tempos!, suspiram os velhos. E minha sobrinha duvida: será mesmo que nos tempos de dantes era melhor?

Não, não era melhor. Pelo menos no meu tempo não era. E não creio que tempo nenhum tenha sido melhor.

Gente mais velha tem memória fraca, ou pelo menos memória seletiva.
Recorda apenas o agradável e trata de esquecer o ruim.

Ser moço é uma carga muito dura que só se agüenta porque moço tem força e resistência. Só os velhotes frívolos ou desmemoriados falam sinceramente em saudade dos tempos de juventude.

Meninice, adolescência, mocidade são quadras amargas que a gente atravessa porque não tem outro jeito. E, quando se olha para trás, com o recuo que nos dá a idade, nem se compreende como se teve capacidade para viver aquilo tudo e sair incólume - sair-se pelo menos vivo!

Aquela inquietação, aquela angústia de fazer as coisas. Um exaltado sentimento de responsabilidade pessoal, simultaneamente com a aflitiva consciência de que todos os comandos do mundo estão em outras mãos - mãos que nos parecem incapazes, caducas, inatuais, ineptas. Ah, como é dramática na mocidade essa carga de responsabilidade pelo mundo. Me lembro quando eu andava entre os 18 e os 20, as culpas que carregava nos ombros, tudo que andava certo ou errado, a bem dizer era meu. As crianças famintas na China, os sem-trabalho ingleses, os oprimidos negros americanos, os nossos moços revolucionários que morriam de febre na Clevelândia, a desigualdade das leis, o casamento indissolúvel, o divórcio, as mães solteiras, a mais-valia, o dia de trabalho de oito horas, o slogan por trabalho igual salário igual, a guerra imperialista, o Tratado de Versailles, Sandino, o Kuomintang, as nacionalizações do México, Saco e Vanzetti - tudo isso me pesava às costas. Quando Hitler tomou o poder, em 1932, passei a noite chorando.Começava o stalinismo a sua obra de decomposição da revolução russa, e já arrebitávamos a orelha às denúncias de Trotski, temendo-se pelos atentados à herança de Lenin.

Isso no terreno sociopolítico-universal. E no terreno íntimo e pessoal?

Não se dá apreço, sendo moço, aos valores reais da mocidade - a pele fresca, a inteligência intocada, o coração generoso. O que se sente é a peia da inexperiência, é a conspiração dos mais velhos. Aquela vontade de gritar, de furar muralhas e tratar os outros de igual para igual. De parecer sofisticado, seguro de si irônico e superior!

E ainda não aludi ao coração. Os dramas de coração. O amor o grande tormento dos moços, que começa na adolescência e se prolonga até à pacificação da meia-idade.

Tente lembrar-se, cavalheiro, do seu primeiro namoro - os temores que padeceu, os ódios, os ciúmes, o diabólico sentimento de inferioridade. O terrível desespero nos rompimentos, os desejos de suicídio, a impressão de que o mundo acabou.

Mas de tudo, tudo, o que eu lembro pior na mocidade é o vazio do futuro à frente. Não uma promessa, mas um vácuo. Não caminho florido, mas um túnel de conteúdo ignorado.

A coisa de que a mocidade tem mais medo é do fracasso e da mediocridade.

Despreza e lamenta a gente velha que se acomoda com os seus pequenos êxitos de segundo plano. Meu Deus, que conforto a idade madura e a velhice, quando a gente descobre a doçura de ser pouca coisa. Livre do áspero estímulo da ambição, da falta de fôlego da disputa. Descobrir, com surpresa e alegria que não era imperativo categórico a gente ser um sublime romancista, um insuperável artista trágico, um herói popular, um sábio, um santo - UM GRANDE. Que não envergonha ser um romancista menor, um cidadão menor, uma pessoa do comum...

Então a gente se contenta com nem ter muito dinheiro, nem muita fama, nem mesmo, sim - nem mesmo muita felicidade. Aprende a aceitar confortavelmente a meia ração e ainda agradecer por ela. A ceder os primeiros lugares para os mais dotados e os mais sôfregos, sem as fúrias e a pressão que acicatam os favoritos. Descobrir que o bom é bater palmas e não disputar os aplausos.

E ir perdendo, pouco a pouco, a aflição pela sorte do mundo como o português da anedota, constatar, com um suspiro de alívio, que afinal de contas o navio não é nosso. Que, em suma, fizesse a gente o que fizesse, não alterava nada.

Agora a menina vai dizer que, em resumo, a mocidade é generosa e a velhice é egoísta. Claro. Em compensação, a mocidade é ambiciosa e agressiva e a velhice é pacífica, respeitadora do lugar de cada um.Lembre-se também de que a mocidade é a quadra em que se chora. Velho não chora, ou chora pouco. Lágrimas de moço queimam os olhos e maltratam o rosto, enquanto as lágrimas de velho apenas lavam e refrescam.

Pensando bem, pensando bem, o que é bom mesmo é a vida. Porque, afinal, todas essas coisas que se louvam no envelhecer não significam mais que as prestações pagas, as dívidas arquivadas, as esperanças e os ardores peremptos. A promessa do fim.”

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